18.4.08

ZED

Depois de tanto tempo aqui,
encarcerada
já não vai sendo como me sinto.
Sinto-me, eis tudo.
A família visita-me,
esparsa, como sempre o foi,
em actos generosos...
Revi os meus netos
ao longo dos meses.
Às vezes, tudo é claro.
De outras, tudo ignoro.
Sobrevivo, apenas.
Dizem que tenho
Alzheimer.
Ainda saberei o que isso seja?...
Elisa, 67 anos

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8.3.08

EVON

Finalmente,
a Direcção deste Lar de Terceira Idade
reautoriza a net aos utentes.
Estava farto
de fingir
que gosto da estúpida tradição
de... ler o jornal.
Isso é para velhos!
Nós queremos é "navegar"!
Assim, sim. Dá gosto ser velhote!
Até já me doem menos as articulações.
Júlio, 79 anos

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16.4.07

OTIO

[Pois é, já fiz noventa e um...
Estou quase como aquele romance histórico francês,
o "93"...]
.
Estou farto do lar
e dos utentes incultos que aqui moram.
Agora, sou católico ferrenho,
mas gostei do documentário sobre
o túmulo de Cristo, na sic.
Já fui estudante de gnose
e chamei "professor" a um pós-adolescente
que podia ser meu neto.
Aspirei a ser rosacruciano
e nunca fui, mas
sei de umas quantas coisas
que escapam às maiorias.
Agora é que me davam jeito
umas saídas em corpo astral!
Pelo menos, perdia estas
horrendas dores físicas...
Odeio ser velho!
.

Francisco, 91 anos

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16.9.06

ETES

Sou nova no Lar.
Sou também das mais novas.
Custa-me ter vindo tão cedo.
Os meus filhos deixaram de ter espaço:
arrumam-me agora como se faz a um velho livro
que já não sirva,
nada traga de novo,
seja destinado ao olvido.
Aquilo que me traga o peito
é incomensurável.
Dói mais do que tê-los posto,
aos quatro,
no mundo.
Dilacero-me, sangro por dentro, peço a morte.
Ainda só cheguei há dois dias,
mas já me desintegro
nas salas fétidas,
nos olhares baços,
no bafio das roupas que se arrastam com sombras dentro...
Voltarei a ver os meus netos?...
.
Elisa, 67 anos

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14.4.06

SIES


Como diz?
Perguntava eu à menina do jornal.
Vinha entrevistar-me pela minha longevidade.
Queria saber o segredo.
Vinha tentar fazer de mim efeméride.
Volvi-lhe que perguntasse a Deus...
Era ele o responsável.
Quanto a mim, acrescentei que
uma das regras é
- sempre foi, sempre será -
rodearmo-nos de gente com perguntas inteligentes.
A estupidez dos outros tira-nos anos de vida!
Tudo depende do que se pergunta.
No caso da jornalista, posso afirmar desde já
- e gritei-lho com força -
que está na profissão errada!
Já não tenho idade para justificar-me.
.
Francisco, 90 anos

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OCNIC

O pior de tudo são mesmo os cheiros.
Sempre fui sensível aos cheiros das coisas em volta.
Aqui, tudo cheira a morte,
até a pêra cozida do almoço,
o pudim,
a sopa, o pão, a água.
Os medicamentos,
a pele dos outros...
Desde menina, sempre, sempre, os odores das coisas
chamavam o meu nome.
Tudo, tudo tem odores próprios.
E eu sabia de tudo o que me punham no prato:
pelo cheiro da comida, sei tudo o que ela tem.
A sensibilidade à dor, ao prazer, a tudo,
está ao mesmo nível.
Sou muito velha,
mas ainda se vê pelo verde dos meus olhos
a vivacidade que o sangue não nega.
Sou muito velha já,
mas pelos sobrantes fios de cabelos,
percebe-se que respondo a esta lei dos sensitivos:
ainda se me vêem, entre os outros brancos,
cabelos cor de um fogo sem repouso...
.
Dulce, 73 anos
.

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ORTAUQ

Estou farto de estar neste odioso lugar.
O meu filho nunca me visita.
Abandonou-me aqui.
Para sempre.
Espero a morte, apenas.
.
Joaquim, 70 anos
.

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11.4.06

SÊRT

Às vezes, apetece-me fugir daqui,
quando as veleiras são más para os utentes...
De noite é quando se tem mais dores
e é quando elas estão cá para maltratar.
Não é justo.
Gostava de poder ver
quando elas fossem velhas como nós.
Como trapos.
Um dia, todos pagam pelo mal feito.
Isso, gostava de ver, lá do Céu.
O Inferno é isto, agora!
É ainda estar viva.
Deus é cruel.
.
Alice, 85 anos
.

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SIOD

Um homem tem de variar.
Deram-me uma nova canadiana azul.
Não, não gostei: o vermelho é mais alegre...
e eu sou benfiquista desde os 30 anos!
Agora, aqui no Lar chamam-me "O Renegado".
Tenho de recuperar as cores e a reputação.
.
Júlio, 78 anos
.

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MU




Dói-me a sutura na gengiva. Hoje, só sopas.
Chove lá fora.
Não houve visitas.
O tempo não passa.

.

Eduarda, 76 anos
.

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